O cara dos desenhos  

Posted by: Liz Silveira


Tanta gente nesse mundo é enganação, só pode. Pare pra pensar: quem é que é alguma porra realmente? O mundo é dividido entre os que fazem encenação, que dá aí uns bons oitenta e cinco por cento (procure por aí, as pessoas em festa como se cada movimento fosse um clique de foto, o jeito de sentar milimetricamente calculado para nada querer dizer, procure, tantas poses com milhões de amigos e amigas de infância, procure por aí os olhares misteriosos se dando uma importância transcendental com o charme de não aparentar nenhuma, os carros e lugares caros sem querer querendo aparecendo ao fundo das fotografias, os jogos de tortura mental, ligo na terça pra dar tempo dela sentir falta na segunda, sair por cima é a única saída, procure, são tantos os tipos, eruditos preenchidos do sentir externo, felizes de morrer, tristes de matar, artistas papagaios, piadistas sem humor próprio, “autênticos” em série, pessoas super legais e simpáticas o tempo todo, menininhas ouvindo seus IPods com as músicas do momento, pois está na moda. Tudo fruto de ensaio, tudo fruto de frase pronta ou sensação copiada).

Há também os que simplesmente desistiram da vida (os que vagam semi mortos, não se importam mais com machucados, cartas, barulhos de chuva e músculos. Não se preocupam com o que vão dizer ou pensar ou causar ou carregar, foda-se! Que venha a morte mas antes, se der pra gozar só mais uma vez, só mais uma vez, de barrigada ou caridade, agradecem de coração. É o princípio dos alcoólicos anônimos, só que pra parar de morrer: só mais um dia vivendo. Os que não vivem quase enganam que são de verdade, com seus panos, movimentos e bens igualmente abandonados... mas ser de verdade sem “estar” não vale muito, pense bem).

O mundo é dividido entre os que sentem o que gostariam (e não o que sentem) e os que não sentem mais e "ufa, melhor assim". E no meio dessa merda toda, de vez em quando, aparece alguém de verdade. E apareceu. Apareceu o cara dos desenhos. O cara dos uivos e pulos e rabiscos e jeito de olhar que dá vontade de uivar e pular e rabiscar. Eu senti bater fundo, um murro no estômago, um soco no rim! Ele estava lá, vivendo! Ele era, ele sentia. Em cada traço uma catarse daquilo que só ele sabia. Em cada traço ele, tão piedoso, parecia querer dividir com o mundo um pouquinho de emoção "toma, pobre ser inerte de merda. Toma um pouco de vida pra você, larga essa sua carapuça ocidental e experimenta viver sem ser por osmose!" Era isso. Era exatamente isso que ele parecia dizer. Temos aí um ser humano em plena atividade de estar vivo e ser ele próprio. Essa espécie em extinção chamada pessoa, ou gente, ou cara. O cara dos desenhos.

Nosso encontro se deu enquanto eu atravessava uma passarela, lamentei não poder registrar com uma foto. Agora entendo pra que serve um celular com câmera. Quero um também, vai que encontro mais vivos por aí...

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1 comentários

É... um verdadeiro escritor vê enredos onde ninguém mais consegue! Seus textos são muito gostosos de ler, parece que sempre tem algo a ensinar nas entrelinhas.
Sucesso pra você, moça!

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